A modernização da Inteligência
As manifestações do dia 13 de março, a instabilidade política e as investigações que acontecem na conjuntura atual não trazem nenhum tipo de incerteza para a Inteligência de Estado.
A Inteligência atende ao Estado e à Sociedade. Por princípio, as “batalhas” da Inteligência são fora da ação partidária governamental; são elas o contraterrorismo, a contraespionagem, o combate à interferência estrangeira, e a antecipação de informações sobre conjuntura e estabilidade política econômica e social de países com os quais o Brasil se relaciona.
O primeiro impedimento à politização da atividade de Inteligência é o concurso público, que impede que o aparelhamento dos cargos seja feito a base de lealdade ou confiança. Os servidores concursados trabalham para uma carreira de Estado. À Agência Brasileira de Inteligência – Abin faltam hoje cerca de 60% das vagas de Oficiais de Inteligência, ainda a espera de concurso para preenchê-las. Também faltam mais colaborações com outras carreiras de Estado, que possam trabalhar na Abin, em suas áreas de excelência.
O segundo impedimento à politização da atividade de Inteligência é estabelecer com clareza parâmetros e focos da Inteligência. Isso é feito por um conselho – a Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDEN) do Conselho de Governo e pela Política Nacional de Inteligência.
O terceiro impedimento à politização da atividade de Inteligência é o controle externo. Hoje esse controle externo é feito pelo TCU e pela CCAI – Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência, do Congresso Nacional e deve ser continuamente fortalecido pela ação dos parlamentares da maioria e minoria, situação e oposição, que compõem a Comissão no Congresso.
O quarto impedimento deve prevenir a feudalização da atividade de Inteligência: é importante que haja mandato com prazo determinado para a Direção Geral da Abin, de forma a garantir a profissionalização e a impessoalidade desta atividade.
Ainda temos a avançar em todos esses pontos, mas são esses os mecanismos para garantir o caminho da Inteligência de Estado em um país plural e democrático como o Brasil.
O concurso público obrigatório e a estabilidade funcional do servidor nascem com os escopos de, efetivando o princípio da impessoalidade na administração pública, 1) eleger os melhores quadros para funcionar junto ao serviço público, evitando que os critérios de seleção sejam parciais e cordiais (no sentido “buarqueano” do termo), e 2) garantir a independência do servidor que representa a máquina pública frente às influências políticas e os interesses dos grupos de pressão. Destarte, talvez não haja área em que a seleção mediante concurso público seja mais cara à sociedade do que a inteligência de Estado, dado que, trabalhando os seus servidores diretamente com assuntos sensíveis à sociedade e ao Estado Democrático de Direito, sempre atuarão dentro de uma esfera de mínimo sigilo, de forma que ter a garantia da estabilidade para o regular e independente funcionamento dos órgãos da inteligência – inclusive para ir de encontro a ilegalidades e arbitrariedades de instâncias superiores, por ventura ocorridas – torna-se essencial.
De igual sorte, o controle da atividade de Inteligência é área também delicada, considerado o sobredito sigilo inerente a boa parte dos assuntos por ela tratados. Ainda assim, sendo a “accountability” caractere inafastável do serviço público num Estado Democrático de Direito, não se pode simplesmente abrir mão desse controle, que deve dar-se mediante instâncias próprias (principalmente parlamentares, no caso a CCAI, posto a legitimação democrática de seus membros com mandatos conferidos pelo voto popular).
Todavia, como se controlar algo sem ter objetivos claros e meios declarados válidos para atingi-los? Daí a importância de marcos regulatórios como a Politica Nacional de Inteligência, que representem um Norte na atuação da inteligência de Estado, mesmo para que não seja ela utilizada segundo o Bel prazer de seus dirigentes, o que macula frontalemente os princípios da moralidade e da impessoalidade da administração pública.
Como se vê, todos os citados “impedimentos à politização da atividade de Inteligência” citados na nota mostram-se essencialmente interdependentes, sendo de imprescindível consecução a fim de uma atuação eficiente e democrática do serviço de Inteligência nacional.
“Mas, e o quarto ‘impedimento’?”, esse talvez seja o princípio de todos, posto que, da mesma maneira como a accountability eh necessária para a democracia, também o é a alternância de poder. Não importa quão boa seja determinada pessoa ocupante de cargo de liderança, ela não é uma divindade. Destarte, possui seus vícios e falhas, característicos de todos e todas nós. A manutenção de uma mesma pessoa, ou de um mesmo grupo de pessoas, com ideias e demandas constantes, à frente de qualquer instituição representará uma perda de quociente democrático, dado a falta de representatividade da pluralidade essencial da sociedade (sobretudo no caso da brasileira), bem como uma afronta à própria eficiência (como princípio e como demanda) do serviço público, uma vez que a falta de reoxigenação – de novas cabeças com novas ideias – das instâncias decisórias tende a sufocar e diminuir os resultados possivelmente obtidos naquele campo específico.
Prova disso é o questionamento quanto à preocupação da atual gestão da agência central do Sistema Brasileiro de Inteligência com alguns dos “impedimentos” citados na nota: afinal de contas, ao longo de toda a gestão da atual Direção Geral, não houve sequer um pedido para realização de concurso público autorizado pelo Ministério do Planejamento (enquanto outros órgãos conseguiram a autorização para os seus, em alguns casos para até três pedidos nesses sete anos); do mesmo modo, a aprovação da PNI apenas voltou a ser suscitada pela CCAI no ano passado, sendo que, ao longo de anos, houve silencioso embargo de gaveta no Executivo da União de um texto já aprovado pela própria comissão. Como afastar a responsabilidade da Direção Geral da Agência por tal cenário?!
Parabéns à AOFI por suscitar a discussão, tão cara é necessária ao Brasil, cuja população, em grande parte, ainda enxerga a atividade de Inteligência como um instrumento autocrático estatal a ser temido pelo cidadão e pela cidadã detentores de direitos individuais constitucionais e não como uma atividade imprescindível à sua própria segurança e à manutenção desses seus direitos. Cabe à comunidade de Inteligência, com primazia à Direção Geral da ABIN, suscitar uma mudança dessa cultura, principalmente através de sua atuação impessoal e dentro da legalidade, dotada de accountability e voltada para ameaças reais e potenciais ao Estado de Direito brasileiro.